Qualquer viciado em livros sabe o quão mágico é ler e todos os benefícios que a leitura nos traz. Imaginem, agora o que seria descobrir tudo isso só na idade adulta, descobrirem todo o universo das letras e do que elas significam e verem abrir-se um mundo completamente novo à vossa frente. Um mundo cheio de informações, novas possibilidades e maior autonomia. Quase como uma nova existência a partir daí.
Foi o que aconteceu a Margarida, personagem do livro "Agrião" de Clara Pinto Correia e que descreve essa experiência de forma tão deliciosa e enternecedora assim como as suas estratégias para viver num mundo repleto de palavras quando ainda nada lhe diziam.
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«Ler. Margarida procurava explicar à atenção longínqua de Violante que era então como se a cortina se levantasse muito devagarinho, e os seus adormecidos olhos interiores principiassem a descobrir, para lá do que ela pensava ser o limite máximo do horizonte, uma nova e nunca antes pressentida vastidão.
As letras não são só perninhas e curvas com uma forma que eu consigo decorar porque a vejo muitas vezes, e que sei o que quer dizer porque alguém me ensinou, à maneira do que a gente faz para se entender com os autocarros que temos que apanhar todos os dias menos ao domingo. As letras afinal, é como se fossem vivas. A gente pode andar ali de roda delas, pegá-las e despegá-las, tirá-las de um sítio e pô-las noutro, e aquilo nunca se estraga.
Era uma porta que se estava a abrir devagarinho para uma dimensão nova, que a todas as coisas daria luz.
Defendera-se, desde que chegara à cidade, decorando o feitio de todas as palavras que lhe interessavam. . «Damaia», no letreiro do 34 que parava na avenida às 5 e 46, quando todo o bairro hesitava em acordar, era um vulto retangular de geométrica regularidade. «Saldos», na montra de trás da mercearia onde se empilhavam cintas e camisas de noite em floridos motivos de nylon, era um desenho de curvas gordas e garradas. «Avenida Cidade de Lourenço Marques», na rua que tinha de atravessar com precaução quando queria quando queria ir ao supermercado, era uma série de traços finos e escuros.
Agora tudo estava em vias de se tornar diferente. Um imenso labirinto de estranhos símbolos começava a domesticar-se em formas perfeitamente disciplináveis pela tenacidade do seu esforço. Margarida aprendia a ler. O-li-vro-é-um-bom-a-mi-go.»
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