Quando se tem demasiados livros acabamos por perder, um pouco, a noção do que mora nas nossas estantes. Estava eu à procura de um livro curto para ler quando peguei em "Lugares Comuns" de João Luís Barreto Guimarães. O nome dizia-me algo, fui investigar e descobri o porquê, tinha sido o galardoado com o Prémio Pessoa em 2022 e eu que já o tinha na estante desde 1998, não mérito meu, mas da amiga que me o ofereceu nessa altura.
E que agradável descoberta e surpresa!
LUGARES COMUNS
de João Luís Barreto Guimarães
Poesia
115 páginas
Durante um ano, entre 1994 e 1995, o autor sentou-se, todas as quintas-feiras numa mesa do Café Corcel no Porto e observou, o que por lá ia acontecendo, descodificando instantes, olhares, cumplicidades, silêncios, presenças e ausências que nos chegam numa prosa poética de tom melancólico cheia de humor e ironia.
Ao ritmo das estações do ano, vão sendo captados esses instantes da vida quotidiana em textos, ora curtos ora mais longos, mas sempre incisivos que nos contam pequenas histórias sobre os mínimos acontecimentos do dia-a-dia. E que simultaneamente vão acompanhando o processo de escrita do próprio escritor.
«Acontecem-nos por vezes coisas que não nos ocorre reter. Deixamos que o instante as leve e escrever é estar atento a esse fluxo de palavras, é saber dar-lhes quarto se visitam a nossa morada.(...) É que a todo o instante acontecem coisas que era importante reter, e são essas coisas poesia no seu estado mais puro.»
Os Lugares Comuns que povoam o Café são nos trazidos através de uma linguagem igualmente comum e acessível. Sempre num misto de humor e ternura, o autor vai nos revelando a ironia de situações triviais que observa, surpreendendo-nos, muitas vezes, com os seus finais inesperados em forma de reflexão ou quase sentença.
14 de Março
«O rapaz da mesa em frente ainda não se apercebeu de que eu já me apercebi que ele se descalçou. É um hábito que tem sempre que vem ao Café, libertar os pés para sentir sob a textura das meias, a temperatura do chão. Pensará que só assim timidamente descalço, poderá criar raízes.»
19 de Outubro
«O casal da mesa ao lado não tocou nas palavras durante o pequeno almoço. Cumpriu-o indiferente sem incomodar o silêncio, sem ter provado sequer uma curta vez que fosse do dissabor das palavras.
O casal da mesa ao lado já deve ter dito tudo.»
Um livro sobre coisas que acontecem a todo o instante que não nos ocorre reter e que acabam por ser, segundo João Luís Barreto Guimarães, poesia no seu estado mais puro. Um livro em que se ouve e lê o autor enquanto vive esses instantes comuns, sentado à mesa do Café e lhes dá corpo.
Pois é, quem nunca sentado numa mesa de café, observou o vizinho do lado, se deixou levar pelas conversas alheias e até conjeturou sobre as mesmas? Talvez, a maior parte de nós. E porque não há lugar mais privilegiado da observação do mundo que leva à escrita, o poeta transformou estes Lugares Comuns em poesia e vai nos desvendando, um pouco, da forma como a faz e do seu processo quotidiano de escrita, com os seus avanços e recuos.
João Luís Barreto Guimarães é um médico, tradutor e poeta português que publicou o seu primeiro livro em 1989 ("Há violinos na tribo"). Tem muitas das suas obras publicadas em várias antologias e revistas sobre poesia em vários países. É o autor do blog Poesia & Lda. que embora sem publicações novas há algum tempo, continua disponível na internet com um vasto catálogo sobre autores de poesia de todas as nacionalidades.
Os seus livros de maior êxito, "Mediterrâneo" (2016) e "Nómada" (2018) ganharam vários prémios nacionais e levaram-no a finalista do Prémio Literário italiano Camaiore. E foi o primeiro autor de origem não americana a ser premiado com o Willow Run Poetry Book Award pela versão inglesa do seu livro "Mediterrâneo".
Em 2022 foi a 36.ª personalidade escolhida para receber o Prémio Pessoa por ser "uma voz inconfundível na poesia portuguesa contemporânea", na medida em que "escreve sobre nós, portugueses, e escreve sobre tudo o que vê e o que observa, o que sente e o que pensa, e escreve sobre o outro com uma atenção permanente".
POESIA REUNIDA (Onde podem encontrar este livro)
*** (Gostei)
RECOMENDADO a leitores iniciantes em prosa poética/poesia; apreciadores da ironia
REMÉDIO LITERÁRIO para valorizar os instantes do dia a dia; pausar na correria da cidade; apreciar o quotidiano
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